Em Busca do Amor Quase Perdido.
“No dia em que nascemos
E vivemos para o mundo
Nos falta uma costela
Que encontramos num
segundo”...
(Vicente
Celestino)
Domingo
de sol, cidade aprazível, pé de serra, final dos anos 50. O sinal de TV ainda
não riscava os ares cearenses. A juventude se divertia com longos “papos”,
banhos de cascatas ou torcendo pelo valoroso e esforçado time de futebol do
nosso Maranguape. Foi em um desses jogos que um amigo comum fez as devidas apresentações:
Eu e Ela. Foi o princípio de tudo.
Tal quase todos os jovens
de então, trabalhava durante o dia e cursava o científico à noite. Sobravam os
fins de semana para o namoro. O amor corria sob as rédeas da paixão quando os irmãos,
responsáveis pela menina, resolveram que seria mais prudente “devolvê-la” à mãe,
que desde
um par de anos se mudara com o novo marido e o filho mais novo para o interior
do Paraná. A tristeza da inesperada separação só não foi maior que a
estratégia armada para ir em busca do
amor quase perdido.
A turma do Liceu do Ceará de 1961 estava com dificuldades em arrecadar dinheiro para a festa de término do curso
secundário, quando uma oportunidade surgiu nas páginas do jornal. O Presidente
da Loyde Aéreo Brasileiro viria visitar o Ceará, terra que o acolhera e tratara
muito bem durante uma viagem dificultosa que tivera em tempos idos. Eu e mais
três colegas fomos ao aeroporto para recepcioná-lo e aproveitamos uma brecha no
protocolo para solicitar sua ajuda em nosso desejo de conhecer o Rio de
Janeiro. O simpático empresário nos pediu que o procurasse no dia seguinte no
escritório alencarino da empresa, à época situada na esquina da Rua Major
Facundo com Pedro Pereira, térreo do Edifício recém construido do IAPC.
Chegando lá, sem grandes
esperanças, mas impressionados com a simplicidade do Presidente de tão prestigiada
companhia aérea, fomos graciosamente brindados com quatro cortesias “daqui pra
li e de lá pra cá”, Fortaleza-Rio-Fortaleza, voando nas asas do famoso DC-4 – Skymaster.
Confesso que quase apanhamos
do restante da turma que ficou tanto a ver navios, como bem distante de “embarcar”
no formoso quadrimotor a hélice do Lloyde. Foram duas horas até Recife e mais
duas até o soteropolitano Aeroporto 02 de Julho, onde desembarcamos para o almoço
incluído no bilhete. A apimentada comida baiana pesou na barriga e as três
horas e quarenta minutos até o Rio passaram quase despercebidas. O sol já se
escondia por trás do Corcovado quando aterrizamos no Aeroporto Santos Dumont.
Dez impossíveis horas entre Fortaleza e o Rio para os que só acreditam nas proezas
da modernidade.
A capital acabara de se mudar
para o cerrado Goiano, quando quatro jovens cearenses, cada um com seus próprios
planos, mal sentiram na pele o ameno frio da Terra do Cristo Redentor ( a mesma
fundada por Estácio de Sá aos 20 de Janeiro de 1567 e batizada então como São
Sebastião do Rio de Janeiro), ali mesmo
no aeroporto, tomaram seus diferentes destinos. Meu querer era pegar um ônibus
direto para a megalopólica São Paulo, mas pelo avançado da hora tive mesmo foi
que arranjar um lugar para passar a noite na capital carioca. Instalei-me no
Grande Hotel São Francisco, na Visconde de Inhaúma com Av Rio Branco, no centro histórico da cidade. O Cristo nem
tivera tempo de abrir os braços quando acordei e fui ao terminal Rodoviário
(ainda não existia a Rodoviária Novo Mundo), onde descobri que só havia passagem
para o outro dia “ao meio-dia e meio”, expressão mais que estranha ao ouvido cearense tao íntimo do “doze e meia”. O
porteiro do hotel, tão paraíba quanto eu, e sensibilizado com meu escancarado
desânimo, me sugeriu que pegasse o trem expresso que saía da Central do Brasil
por volta das 6:00 horas da manhã, indo direto para a Estação da Luz em São
Paulo. De lá até a Estação Sorocabana era um pulo e então era só embarcar no
trem para Maringá, norte do Paraná, que saía as 20:30 horas.
A viagem de trem Rio-São Paulo foi feita sob
grande ansiedade pois tinha a certeza que demorava mais que o previsto e a única
comida que conseguia engolir era sanduiche de mortadela com guaraná Antártica,
delícias que hoje aceito com muitas restrições, só para não ser indelicado. O
pensamento flutuava entre a namorada e a Estação Sorocabana. Vi passar Volta
Redonda, Resende, Itatiais, Queluz, Lorena, Aparecida, Guaratinguetá, Taubaté,
São José dos Campos, Guarulhos e tantas outas cidades do Vale do Paraíba, e São
Paulo me parecia cada hora mais longe.
Mas como o tempo e o espaço
não pertencem ao mundo do desejo, o trem chegou pontualmente, como prometido, na
charmosa Estação da Luz e num salto estava na almejada estação Sorocabana. Agora
era só concentrar o pensamento no objetivo final: chegar o mais cedo possível
nos braços de minha amada, que inocentemente desconhecia por completo minha ida
ao Paraná.
Antes porém teria que passar
por um grande susto que paradoxalmente me acalmou a ansiedade e a excitação.
Era noite, tínhamos saído há poucos minutos da Estação Sorocabana quando um
outro trem cruzou com o meu. A impressão de fim de mundo quase me borra as
calças de terror, fato que serviu de enorme regojizo ao sulista que viajava na
poltrona da frente: ver um cabeça chata nordestino tomar tamanho susto por
coisa tão corriqueira para ele. Claro, aqui eu só conhecia um par de trilhos onde trafegava a velha
“Maria Fumaça” da antiga RVC. Até Ourinhos, divisa de São Paulo com o Paraná, o
trem era elétrico. De lá até o seu
destino final, assumia o comboio uma palpitante locomotiva a diesel. Era Julho
e o meu agasalho para enfrentar o frio sulino era a expectativa da chegada de
surpresa depois de viajar quase quatro mil quilômetros. Adianto a memória para
a brusca queda da temperatura no Paraná que me fez ficar quase três dias sem
tomar banho.
Cheguei numa Apucarana
ainda de madeira e barro, mas já em acelerado processo de desenvolvimento que
se concretizou, sendo hoje uma das pérolas do norte do Paraná. Trinta anos
depois, quando eu e ela voltamos a visitá-la, só a reconhecemos pela Igreja
Matriz, próxima a estação do trem.
A expectativa era grande,
mas o medo de não ser bem recebido era maior, por isso me hospedei num hotelzinho
no centro da cidade, onde criei coragem e liguei para meu pretenso futuro
cunhado, pedindo sigilo absoluto da minha chegada. Depois de uma noite fria e insone,
fui recompensado. Quase dois dias e meio depois de minha saída de Fortaleza fui
convidado a ficar hospedado na casa da família, paraíso onde morava a deusa dos
meus sonhos. No dia seguinte perguntei se ela queria casar com aquele doido que
atravessara o país por seu amor. Foi quando me dei conta que havia me esquecido
da aliança, embora e felizmente a carteira estivesse estufada com as notas que
meus parentes me deram como presente de formatura. Comprei um par numa ourivesaria da cidade e à
noite, após uns bons e estimulantes goles de conhaque “Castelo”, fiz o pedido
oficial à mãe, ao padrasto e ao irmão, e finalmente ficamos noivos ao som de
Sibonay, primeira faixa do Long Play “Ivanildo – O Sax de Ouro, Vol. I”,
lembrança presente que Eu levara para Ela. Sempre que ouço a música de Ernesto
Leucona me transporto àqueles dias de ansiosa e apaixonada emoção.
A viagem de volta passou
desapercebida, tanta era a paixão que ocupava meu pensamento. Os ouvidos também estavam selados para os que
diziam que eu estava louco, principalmente pela pouca idade e ainda incerta situação
financeira. Contavam que eu passara todos os dias curtindo as praias cariocas e
não selando meu destino com o amor de toda uma vida. Nos casamos em março de
1962.
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