Acordei com uma bruta dor na boca. No lugar dos incisivos
centrais um coágulo quente e macio chamava a atenção de minha inquieta língua,
vítima comum da noite anterior. Tinha sede. Tateei no escuro a procura de um
mínimo de humanidade em forma de água e nada. Gemi, inicialmente baixo, um
lamento, um sussurro em busca de piedade, um lamento cheio de dor e desespero,
um pedido de socorro, um fio ínfimo de esperança. Um click antecedeu em
impercebíveis milésimos de segundos o clarão que encandeou minha retina. Minha
ofuscada figura foi carregada por dois fortes pares de braços através de um
corredor de lamurientos gemidos até uma sala grande próxima o bastante para que
minha visão não pudesse ter recuperado a lucidez. As vozes se misturavam
trazendo-me maior inquietação. Uma delas pediu que me encapuzassem. Por um
instante vivi a ilusão que conhecia seu dono e já ia inspirar um pouco de
esperança quando um soco me quebrou o nariz. Antes que abrisse a boca para
poder respirar, um jab de esquerda me descolou a mandíbula impondo pela força o
ato que faria por pura e voluntária necessidade. O zumbido no ouvido perturbou
minha percepção auditiva; as vozes se misturaram deixando-me órfão de qualquer
consolo. Desejei que a morte chegasse célere e este pensamento trouxe-me paz e
resignação. Tentei entregar minha alma a Deus, mas o exercício de incredulidade
dos vividos anos sem fé falou mais alto e mudei imediatamente o foco para a
inviabilidade do eu diante da enormidade impenetrável do universo cósmico. Um
balde de água gelada me acordou do sonho de Nirvana. Senti a dureza fria do
concreto contra minhas proeminências ósseas. O foco cirúrgico me mantinha cego.
A voz - teria sido aquela que julgara conhecida? - pediu com um grito quase
desesperado que apagassem a luz.
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