Este livro foi escrito por um
menino vaqueiro que com ajuda de seu primo Dr Nelson de Andrade Sales, Médico formado
na primeiro faculdade de Medicina do Brasil, a da Bahia, e a quem meus pais me
ofereceram como afilhado, formou-se advogado no ano de 1954. Não posso dizer
com certeza, talvez sua mulher e companheira nos possa depois nos contar,
quando nasceu em sua cabeça inquieta a ideia de escrever suas memórias. Sei que
muitas foram as noites que acordei com o sussurro frenético de sua velha e
resistente máquina de escrever que ele dedilhava usando os somente os dois
indicadores. Houve também muitos
períodos de silêncio, prováveis tempos para meditação. Aquelas páginas foram
assim ficando amareladas, enquanto ele ia acrescentando uma a uma até se
acumular num grande maço de papel que não quis sair da gaveta enquanto ele
ainda vivo. Será que ele ainda não estava satisfeito e achava que tinha mais
algo para contar? Nunca saberemos. Ouvi dele muitas histórias que não encontrei
neste livro. Deve ter as considerado indignas de serem lembradas ou mais
provavelmente as tenham condenado ao esquecimento. Não sei se será possível
esquecê-las, talvez eu as conte um dia em forma de ficção assim como ousei
fazer com uma de suas primeiras reminiscências, a qual intitulei:
O advogado que queria ser
vaqueiro:
Deixando a Fazenda Corrente
As lágrimas caíam e escorregavam
pela crina lustrosa do cavalo baio. De sua boca saia uma única palavra: “não”.
Não queria deixar a fazenda, a mata seca e fechada da caatinga, as caçadas
noturnas, os buracos de peba, o cheiro do curral, as vacas e seus bezerros, as
disparadas dos cavalos, os jumentos e suas cargas d’água, os banhos na lagoa
grande, os cachorros sempre em volta do alpendre onde o pai conversava com os
cumpadres e caboclos, a mesa grande onde se servia todo e qualquer filho de
Deus que se encostasse por lá antes mesmo da família, e principalmente, sua
mãe. Por que tinha de estudar se tudo que gostava estava ali, se podia ser
feliz como tantos e tantos que nasceram e morreram ser sequer assinar o nome,
sem nunca ter feito uma conta. Ouvia histórias de professoras carrancudas e
suas palmatórias sem perdão, de manhãs inteiras sobre carteiras duras, com
sapatos apertados e bico calado, olhando sem pestanejar para uma lousa preta
enrabiscada de letras que juntas formavam o tal alfabeto que todos tinham de
decorar se não quisessem sentir o peso da palmatória. O irmão seguia silente,
satisfeito, sorriso esboçado na esperança de aventuras por viver; boi inocente
a caminho do abatedouro, pensava entre um soluço e outro. Na frente do comboio
seguia o pai, fazendeiro simples, calça curta mostrando as chinelas de couro
cru, chapéu de palha esfiapado e ressecado pelo sol inclemente, cigarro de
palha na boca que lhe tingia o bigode de amarelo, pequeno chicote na mão
direita enquanto a esquerda guiava o cavalo alazão. Cansado os ouvidos, puxa as
rédeas do animal, espera o filho inconformado e se deixam ficar no fim da
procissão. Sem que o outro ouça promete ao menino que deixará o irmão na cidade
e o trará de volta para a fazenda. A palavra do pai, lei maior não conhece, lhe
devolve toda a alegria dos primeiros onze anos de vida. Em breve descobrirá que
o amor paterno guiado pela consciência e o dever de dar o melhor para os filhos
é maior que qualquer pequena mentira.
Há quatro exatos anos, era um
domingo triste e chuvoso, quando ele nos deixou. Estes papéis ficaram guardados
na velha gaveta de seu grande Birô até hoje, quando vos apresentamos sua
história. Termino dando voz ao autor: “Se, ao lerem estas Reminiscências,
encontrarem alguma razão para segui-las como exemplo de conduta, que o façam
como eu o fiz: com ideal grandioso e puro”.