sexta-feira, 1 de novembro de 2019

Em Busca do Amor Quase Perdido


Em Busca do Amor Quase Perdido.


 “No dia em que nascemos
E vivemos para o mundo
Nos falta uma costela
Que encontramos num segundo”...
(Vicente Celestino)

Domingo de sol, cidade aprazível, pé de serra, final dos anos 50. O sinal de TV ainda não riscava os ares cearenses. A juventude se divertia com longos “papos”, banhos de cascatas ou torcendo pelo valoroso e esforçado time de futebol do nosso Maranguape. Foi em um desses jogos que um amigo comum fez as devidas apresentações: Eu e Ela. Foi o princípio de tudo.
Tal quase todos os jovens de então, trabalhava durante o dia e cursava o científico à noite. Sobravam os fins de semana para o namoro. O amor corria sob as rédeas da paixão quando os irmãos, responsáveis pela menina, resolveram que seria mais prudente “devolvê-la” à mãe, que desde um par de anos se mudara com o novo marido e o filho mais novo para o interior do Paraná. A tristeza da inesperada separação só não foi maior que a estratégia  armada para ir em busca do amor quase perdido.
 A turma do Liceu do Ceará de 1961 estava com dificuldades em arrecadar dinheiro para a festa de término do curso secundário, quando uma oportunidade surgiu nas páginas do jornal. O Presidente da Loyde Aéreo Brasileiro viria visitar o Ceará, terra que o acolhera e tratara muito bem durante uma viagem dificultosa que tivera em tempos idos. Eu e mais três colegas fomos ao aeroporto para recepcioná-lo e aproveitamos uma brecha no protocolo para solicitar sua ajuda em nosso desejo de conhecer o Rio de Janeiro. O simpático empresário nos pediu que o procurasse no dia seguinte no escritório alencarino da empresa, à época situada na esquina da Rua Major Facundo com Pedro Pereira, térreo do Edifício recém construido do IAPC.
Chegando lá, sem grandes esperanças, mas impressionados com a simplicidade do Presidente de tão prestigiada companhia aérea, fomos graciosamente brindados com quatro cortesias “daqui pra li e de lá pra cá”, Fortaleza-Rio-Fortaleza, voando nas asas do famoso DC-4 – Skymaster.
Confesso que quase apanhamos do restante da turma que ficou tanto a ver navios, como bem distante de “embarcar” no formoso quadrimotor a hélice do Lloyde. Foram duas horas até Recife e mais duas até o soteropolitano Aeroporto 02 de Julho, onde desembarcamos para o almoço incluído no bilhete. A apimentada comida baiana pesou na barriga e as três horas e quarenta minutos até o Rio passaram quase despercebidas. O sol já se escondia por trás do Corcovado quando aterrizamos no Aeroporto Santos Dumont. Dez impossíveis horas entre Fortaleza e o Rio para os que só acreditam nas proezas da modernidade.  
A capital acabara de se mudar para o cerrado Goiano, quando quatro jovens cearenses, cada um com seus próprios planos, mal sentiram na pele o ameno frio da Terra do Cristo Redentor ( a mesma fundada por Estácio de Sá aos 20 de Janeiro de 1567 e batizada então como São Sebastião do Rio de Janeiro),  ali mesmo no aeroporto, tomaram seus diferentes destinos. Meu querer era pegar um ônibus direto para a megalopólica São Paulo, mas pelo avançado da hora tive mesmo foi que arranjar um lugar para passar a noite na capital carioca. Instalei-me no Grande Hotel São Francisco, na Visconde de Inhaúma com Av Rio Branco,  no centro histórico da cidade. O Cristo nem tivera tempo de abrir os braços quando acordei e fui ao terminal Rodoviário (ainda não existia a Rodoviária Novo Mundo), onde descobri que só havia passagem para o outro dia “ao meio-dia e meio”, expressão mais que estranha ao ouvido  cearense tao íntimo do “doze e meia”. O porteiro do hotel, tão paraíba quanto eu, e sensibilizado com meu escancarado desânimo, me sugeriu que pegasse o trem expresso que saía da Central do Brasil por volta das 6:00 horas da manhã, indo direto para a Estação da Luz em São Paulo. De lá até a Estação Sorocabana era um pulo e então era só embarcar no trem para Maringá, norte do Paraná, que saía as 20:30 horas.
A  viagem de trem Rio-São Paulo foi feita sob grande ansiedade pois tinha a certeza que demorava mais que o previsto e a única comida que conseguia engolir era sanduiche de mortadela com guaraná Antártica, delícias que hoje aceito com muitas restrições, só para não ser indelicado. O pensamento flutuava entre a namorada e a Estação Sorocabana. Vi passar Volta Redonda, Resende, Itatiais, Queluz, Lorena, Aparecida, Guaratinguetá, Taubaté, São José dos Campos, Guarulhos e tantas outas cidades do Vale do Paraíba, e São Paulo me parecia cada hora mais longe.
Mas como o tempo e o espaço não pertencem ao mundo do desejo, o trem chegou pontualmente, como prometido, na charmosa Estação da Luz e num salto estava na almejada estação Sorocabana. Agora era só concentrar o pensamento no objetivo final: chegar o mais cedo possível nos braços de minha amada, que inocentemente desconhecia por completo minha ida ao Paraná.
Antes porém teria que passar por um grande susto que paradoxalmente me acalmou a ansiedade e a excitação. Era noite, tínhamos saído há poucos minutos da Estação Sorocabana quando um outro trem cruzou com o meu. A impressão de fim de mundo quase me borra as calças de terror, fato que serviu de enorme regojizo ao sulista que viajava na poltrona da frente: ver um cabeça chata nordestino tomar tamanho susto por coisa tão corriqueira para ele. Claro, aqui eu só conhecia  um par de trilhos onde trafegava a velha “Maria Fumaça” da antiga RVC. Até Ourinhos, divisa de São Paulo com o Paraná, o trem era elétrico. De lá  até o seu destino final, assumia o comboio uma palpitante locomotiva a diesel. Era Julho e o meu agasalho para enfrentar o frio sulino era a expectativa da chegada de surpresa depois de viajar quase quatro mil quilômetros. Adianto a memória para a brusca queda da temperatura no Paraná que me fez ficar quase três dias sem tomar banho.
Cheguei numa Apucarana ainda de madeira e barro, mas já em acelerado processo de desenvolvimento que se concretizou, sendo hoje uma das pérolas do norte do Paraná. Trinta anos depois, quando eu e ela voltamos a visitá-la, só a reconhecemos pela Igreja Matriz, próxima a estação do trem.
A expectativa era grande, mas o medo de não ser bem recebido era maior, por isso me hospedei num hotelzinho no centro da cidade, onde criei coragem e liguei para meu pretenso futuro cunhado, pedindo sigilo absoluto da minha chegada. Depois de uma noite fria e insone, fui recompensado. Quase dois dias e meio depois de minha saída de Fortaleza fui convidado a ficar hospedado na casa da família, paraíso onde morava a deusa dos meus sonhos. No dia seguinte perguntei se ela queria casar com aquele doido que atravessara o país por seu amor. Foi quando me dei conta que havia me esquecido da aliança, embora e felizmente a carteira estivesse estufada com as notas que meus parentes me deram como presente de formatura.  Comprei um par numa ourivesaria da cidade e à noite, após uns bons e estimulantes goles de conhaque “Castelo”, fiz o pedido oficial à mãe, ao padrasto e ao irmão, e finalmente ficamos noivos ao som de Sibonay, primeira faixa do Long Play “Ivanildo – O Sax de Ouro, Vol. I”, lembrança presente que Eu levara para Ela. Sempre que ouço a música de Ernesto Leucona me transporto àqueles dias de ansiosa e apaixonada emoção.    
A viagem de volta passou desapercebida, tanta era a paixão que ocupava meu pensamento.  Os ouvidos também estavam selados para os que diziam que eu estava louco, principalmente pela pouca idade e ainda incerta situação financeira. Contavam que eu passara todos os dias curtindo as praias cariocas e não selando meu destino com o amor de toda uma vida. Nos casamos em março de 1962.