sábado, 31 de março de 2012

Céu nublado


Quando tudo estiver
Esquecido e morto
Vencido e perdido
Feio e asqueroso.
Saberei que tudo
Foi em vão
E ao mesmo tempo
Maravilhoso. 

Amor cego



O mundo gira
E não paro de amar.

Amo a língua do mudo
Os olhos do cego,
Os ouvidos do surdo.

Amo a morte que me vigia,
O doce frio que brota da lua
Na noite que antecede o dia.

Amo meio sem jeito
Me atrapalho, me exalto
O coração grita, reclama,
Querendo sair do peito.

E quando o sono vem
E a cruel razão se esvai
Sonho contigo a meu lado
E o mundo não tem mais ninguém.

13.01.09 

quinta-feira, 29 de março de 2012

Velhice indesejada


“Dizem que os velhos são egoístas, materialistas, roncadores. Uns verdadeiros porcos”. Só na metade do livro encontramos a explicação para o nome da guerra que se inicia sem se anunciar, fato digno do realismo fantástico latino americano. Tomados por um ódio repentino os jovens de Buenos Aires passam a espancar até a morte seus velhos. Vista pelo olho de um quase sessentão aposentado, algo impossível nos dias de hoje, onde a idade mínima para o homem dar por encerrada sua vida produtiva é sessenta e cinco anos, as razões para a tal Guerra dos Porcos quase que se justificam. Por que viver uma vida improdutiva, sem o conforto do amor e o consolo de uma companhia decente? Os poucos amigos com quem divide o tempo ocioso num jogo de truco cheio de manobras não muito honestas, são mero passatempo, companheiros de uma solidão interior impossível de preencher. Bioy desnuda o medo que todo velho tem de se descobrir inútil, indesejável e invisível. A morte violenta e precoce do velho seria uma espécie de eutanásia a favor de uma sociedade sempre em busca da produção vigorosa e do movimento incessante, que não  dispõe de lugar para os mecanismos desgastados pelo tempo. Mas toda guerra acaba. A trégua chega de forma inesperada coincidentemente quando uma jovem mulher troca inopinadamente seu viril pretendente pelo nosso vetusto personagem. É como se Bioy nos ensinasse que está no amor a solução do drama humano e que nada, nem a morte, ou sua proximidade, é maior que ele.  

quarta-feira, 28 de março de 2012

Fugidor.


Fujo dos planos
Como o diabo da cruz.
Prefiro baião de dois
A leite com cuscuz.

Fujo do poder
Como o rato do gato.
Prefiro passar aperto
A ter que fazer no mato.

Fujo da miséria
Como o gato do cão.
Prefiro me lambuzar de mel
A jantar café com pão.

Fujo da violência
Como o sol faz com a lua.
Prefiro rodear mil léguas
A passar na tua rua.

Fujo da hipocrisia
Como o bode da chuva
Prefiro uma mentira sincera
A um afago de luva.


Fujo da dependência
Como a cobra do ninho
Prefiro beber cachaça
A que me paguem o vinho


19.01.05

segunda-feira, 26 de março de 2012

Juventude


Após ler Juventude fico com a impressão que Coetzee sofreu da mesma crise de genialidade do seu personagem, mas ao invés de sofrer por isso, assumiu publicamente e escancarou aos quatro cantos do mundo, com todo o direito e possibilidade de fazê-lo de um nobelizado, que é um mero mortal, embora a academia sueca não pense assim. Quem consegue ou conseguiu ser notável em tudo que faz? Uma ponta de dúvida quer salvar em mim a ótima impressão que tenho de Coetzee. Ou ele escreveu o livro ainda quando jovem e tendo-o engavetado, só agora o publicou, ou o escreveu agora exatamente como se fosse um jovem e iniciante escritor, demonstrando sua genialidade. A verdade é que faltam ao livro o peso das ideias e as discussões filosóficas de livros anteriores. Quem sabe este relaxamento não seja um desabafo, um descarregamento do peso acumulado em viagens anteriores. Enquanto espero dias melhores para o por vir do nosso imortal, resolvi vasculhar seu passado para me convencer que se nem tudo são flores, os espinhos certamente são percalços na trajetória de um artista. 

sábado, 24 de março de 2012

Comunhão

A comunhão integral
Com a vida
Exige muito mais
Que a fé
Na eternidade.

Exige a paz interior
Que a noção de pecado
Insiste em nos negar.

Exige o silêncio da alma,
Sempre teimando
Em si pensar.

Exige o prazer
Que não se encontra
Com os sentidos.

Exige a certeza
Da ausência
De causas 
E de motivos.

15.12.11

quinta-feira, 22 de março de 2012

Vergonha


Calorão. Sede braba. O bebedouro ocupado pelo cara que saiu tossindo grosso. Um embrulho subiu até a boca. Nãaaaa. Cruzou a rua e entrou no bar. Pediu uma garrafinha de mineral e um copo plástico. Enquanto esperava o copo descobriu o rapaz que tomava uma gelada num canto escondido do bar. As pernas amoleceram. Sentou na cadeira mais próxima. Matou a sede, ficou a vontade. Diante da indiferença achou por bem ir embora, a aula já devia ter começado. Quando voltou o bar estava fechado. Virou freguesa. Só na sexta seguinte reencontrou a razão de seu desejo. Já estava grandinha demais para tanto pudor. Perguntou se podia tomar um gole. Duas horas depois estava esparramada na cama, tonta do gozo, grogue de prazer, feliz pelo sonho realizado. O barulho da descarga desperta a atenção. Fixa-se na porta. Sorri diante da expectativa da imagem idolatrada. Ele aparece de camisa passada, cheiro de sabonete. Tira a carteira do bolso de trás. Escolhe algumas notas que coloca sobre a cabeceira. Como ela não reclama entende que é o bastante e sai apressado. Chora, consumida pela vergonha, por seis dias e seis noites. Quando ele chega a encontra na mesa de sempre. Comem e bebem mais do que o de costume. Toma a conta da mão dele. “Hoje quem paga sou eu”.   07.10.05

terça-feira, 20 de março de 2012

Solidão 2


 
A solidão grudou em mim
Que nem faz um carrapato.
Bem feito, para quem
Entrou sem meias no mato.

A solidão não quer ir embora
Nem debaixo de tapa.
Bem feito, para quem
Saiu na chuva sem capa.

A solidão me acompanha
Seja em casa ou na rua.
É minha sombra fiel,
Filha do sol com a lua.

Só nasci,
Só morrerei.
Não foi questão de escolha,
Mas indelatável lei.

O que me corrói a alma
E exaspera o coração,
É a tola teimosia de
Querer viver sozinho
Em meio à multidão.
01/04/03. 

sábado, 17 de março de 2012

Toma Uma Por Mim


Estava eu saindo do trono, já fechando a porta para que o bafo do eliminado não servisse de reclamação e chacota dos presentes, quando o colega entra vociferando sua indignação diante do que lhe acabara de ocorrer. Como poderia ser isso possível? O flanelinha se recusara a lavar seu carro. Diante na interrogação dos presentes o reclamante passou a destratar o dito cujo. Que era um cachaceiro, só trabalhava o suficiente para comprar a pinga do dia. Que o país não poderia ir para frente com gente daquela laia. Bem feito que pegasse uma cirrose. Que não mais lavaria o carro com aquele vagabundo e que tudo era culpa do “Bolsa Família”. Tomei meu café sossegado, expressando minha concordância com um singelo balançar de cabeça. Joguei o copo no lixo, botei a mochila nas costas e me despedi com meu mais sincero e pra cima polegar. Quando ia saindo no portão vi o sujeito do outro lado da rua, já na calçada do boteco, mas ainda lambendo os beiços, dando mais um tempo para a vontade. Desci o vidro e o chamei. Ele veio desconfiado, pronto para receber minha repreensão. Tirei uma nota de cinco do bolso, disse que achava que ia chover e pedi que tomasse uma por mim.      

quinta-feira, 15 de março de 2012

Solidão 1



Companheira de toda uma vida.
Dos primórdios da existência
Ao definitivo suspiro.

Amiga fiel,
Musa inspiradora,
Fonte de dor
E de êxtase.

Eterna e fria amante,
Infiel sou, e sempre fui,
Ansiando encontrar noutro colo
O calor que não possuis.

Não me faz falta teu amor.
Confesso, não te desejo.
Me prendes como a um escravo,
Me torturas com teu beijo.


31/03/03
  

terça-feira, 13 de março de 2012

Dia do Namorado


Ninguém passava pela calçada incólume ao par de coxas na porta do bar. Quem não conhecia o João olhava de soslaio e seguia adiante, a água na boca afogando a inveja do “felizardo”. Os que o conheciam de vista davam boa tarde, sorriam amarelo e iam sonhar mais adiante com a imagem impudica fresca na memória. Havia muitos outros, mas os que interessavam ao nosso felizardo eram os companheiros que viriam sentar a mesa com ele para beber e jogar conversa fora.
“Senta aí cara, a Rosinha não se incomoda não”, fingia um tom casual, mal disfarçando o orgulho.
Com pouco a mesa estava lotada. Rosinha, flor arrodeada de zangões, monopolizava o papo e as atenções, com muito respeito, é claro, ninguém ultrapassava o sinal.
“Mulher de amigo meu pra mim é homem”, todos tentavam se convencer, mas estava difícil pra burro.
Diante do mictório dois deles comentaram.
“Eu não disse que o cara não era bicha coisa nenhuma”, afirmava um.
“É, pra pilotar um avião daqueles tem que ser muito macho”, confirmava o outro.
“Foi criado pela Avó, é só pinta”, explicava.
 Enfim os pombinhos se despediram. Era o primeiro dia dos namorados deles.
“Tinham muito que comemorar”, disse João sem deixar nada escondido nas entrelinhas, enquanto Rosa se enroscava despudoradamente em seu corpo, que só soltou quando dobraram a esquina.
“Passa a grana boneca”, estendeu a mão gulosa.
“Já sabe né, bico calado”, obrigado.
Enquanto a boazuda se afastava faceira ele entrou no carro do namorado. 


domingo, 11 de março de 2012

Amor de Verdade


Quem ama
Não diz “Te amo”,
Prova no olho.

Amor de verdade
É prato que se come frio
Sem sal e sem molho.

É tesouro guardado
Em quarto fechado
Sem ferrolho.

Fev.2012

sexta-feira, 9 de março de 2012

Oito de Março


Ontem, 08 de Março, dormi com remorso por não ter escrito nada sobre o Dia Internacional da Mulher. Confesso que tentei, até escrevi algumas linhas, mas que não convenceram nem a mim mesmo. E escrever sem sinceridade é o mesmo que declarar amor a quem não se ama. Hoje minha mulher comentou que adorara o discurso da nossa presidenta Dilma sobre o dia de ontem. Achou-o sóbrio e coerente, sem pieguices. Disse, para consolo de minha dorida alma, que não se identificava com o tal dia, nem gostava de receber os parabéns, que classificou de melosos, de todos que a encontrava. Entre um cheiro e outro disse que ela é uma felizarda, pois tem uma profissão valorizada e respeitada, é independente financeiramente e tem um marido que compartilha a administração da casa e a educação das filhas (Fiz mal em puxar um pouco de lenha para minha masculina fogueira?). Dito isso, passamos a comentar que essa não é a realidade vivida pela maioria das mulheres do Brasil e do mundo. O modelo econômico que privilegia a "produção" impõe restrições ao trabalho feminino. A realidade biológica da gravidez, da maternidade com sua necessária e consequente amamentação, estabelece barreiras que desvaloriza o valor do seu labor. Felizmente esses obstáculos vêm sendo quebrados e a mulher ganha aos poucos, impossível por um passe de mágica transformar uma cultura socioeconômica de séculos, o lugar que tem direito como ser humana e cidadã produtiva e o dia em que não precisemos mais de uma data para lembrar isso certamente há de chegar.   

quarta-feira, 7 de março de 2012

Calendário


Entra no salão do bar. O cheiro de limão enche o ambiente de frescor. Eita mulher trabalhadeira e caprichosa que eu arrumei. O balcão todo arrumado: caneta e bloco de papel pros pedidos. O cesto vazio, pronto para mais um dia de arremessos. A gaveta organizada, cada nota e moeda com suas irmãs. O chão brilhando que dá gosto, pra freguesada elogiar. A pia sem um pingo sequer, os copos emborcados prontos para receber as manchas dos dedos. O freezer até a tampa de mofadas. Toalhas brancas e limpas cobrem as mesas. Ri satisfeito, vá ter sorte assim na casa do Chico.  Essa conhece o ofício, pensa sem medo. Vai até o calendário mudar a folhinha. Chama a fulana aos berros, era bom demais para ser verdade. A moça chega da cozinha de cabeça baixa. Tá tudo muito bem, mas o que dizer do calendário atolado na poeira. Desculpa seu menino, mas essa imoralidade eu não alimpo não, e volta ligeiro para a cozinha.
Pega a flanela e faz o serviço, se o dono não tiver com o olho pregado o negócio degringola. Empregado é tudo igual, não se pode confiar. Onde se viu tamanha imundice. Deixar a minha menina toda suja, sussurra indignado.
O dia corre quente. Pernas entram e saem, braços abrem e fecham portas, mãos recebem e dão troco.
Porta baixada, dinheiro contado, banho tomado, recolhe-se exausto. O cheiro de sabonete vem devagar. Vira-se para ela já pronto para a luta.
A moça resmunga e dá as costas. Quem devia tá com raiva, e com razão, era eu, o calendário estava imundo, o reclamo sai meio dengoso. Mas já esqueci, dá cá um cheiro, puxa de leve pelo ombro. Ela se volta ligeira. O senhor devia de tirar aquela sem-vergonha da parede, diz com os olhos molhados. Isso tudo é ciúme da moça da foto, a pergunta sai no meio do riso pela inocência da menina. É só o retrato de uma magricela seca e sem bunda. Mas os fregueses gostam, que é que se há de fazer, questão de negócio. Nem se compara com a minha gostosona, diz já em pleno engolfo.
Depois do amor tomba sonolento sobre o travesseiro. Acorda, o lado vazio como sempre.
Entra no bar. Tudo nos trinques como sempre. Vai direto para o calendário. Ela entra satisfeita e pega ele de flanela na mão. “Num precisa mais de limpar não seu menino, eu já tirei o pó de cima da coitadinha.”

segunda-feira, 5 de março de 2012

Bicho do Mato



A vida é breve
E há muitas delas
Se batendo
No pouco espaço
Do mundo.

Por isso
Tanto se preza
À concorrência,
Tanto ódio,
Disputas vãs,
Tanta violência.
Quanto desamor
E bem pouca paciência.

O mundo
É dos rápidos,
Dos que têm pressa,
Ultrapassam sinais
Pulam a fila,
Querem sempre mais.
Transpiram arrogância
Desprezam os iguais

Chegar à frente
Virou obrigação.
Quem pouco quer,
Desconhece a ambição,
É um renegado
Um bicho do mato
Anda na contramão.


21.11.09

domingo, 4 de março de 2012

Amor Antenado


No filme a sensual personagem feminina se mexe e remexe nua pela cama entre lençóis e travesseiros e eu me ponho a imaginar o que estará fazendo naquele exato momento a atriz que emprestou seu corpo e sua interpretação àquela personagem. Será que estará dormindo, fazendo amor com seu companheiro, tomando um banho de espumas, dançando feita louca em uma boate barulhenta sob o efeito de alguma droga ou estará botando os filhos para dormir, pegando um sol numa praia deserta ou atuando em um novo filme. A ideia do enquanto sempre me instigou. Será que aquela mesma atriz nunca parou para imaginar os pensamentos maledicentes que passam pelas cabeças de seus fãs ao vê-la em cenas eróticas? Acabo de fazer uma pausa e pensei no meu amor. Será que ela também se lembrou de mim? Seria muito bom o dom disseminado da telepatia? Pensando bem, seria uma verdadeira confusão, uma balbúrdia indecifrável. Melhor que cada um fique com seu pensamento. Se calhar e contarmos com a sorte de uma concatenação de ideias, aproveitemos do acaso e usufruamos das delícias de um amor antenado.  

sábado, 3 de março de 2012

Na Varanda


Os cirros,
Sobre o tapete
Do infinito céu azul,
Paralisam o tempo
Que pede pressa,
Mas se conforma
E se materializa
No vento que embala,
Inconstante,
As palhas dos coqueiros
Assobiando
O seu efêmero existir.
03.03.12

quinta-feira, 1 de março de 2012

Flanelinha


Um descuido para mudar a faixa do rádio e pronto: o pequeno rodo passeia de um lado a outro banhando meu pára-brisa. O sorriso sem dente não ouve meu dedo que, imitando o limpador, tenta em vão dispensar o serviço não requisitado. Finjo que procuro algum nos bolsos e no console. O rapaz, depois de enxugar as últimas gotas que se acumularam no canto, se aproxima do vidro lateral e pede - sua voz entra abafada, bem do fundo de sua declarada miséria - dez centavos para completar o almoço. Abro os braços e as mãos: “Eu te avisei que não tinha”, falo devagar para que ele faça a leitura labial. Insistente, pede que eu baixe o vidro. O sinal é seu cúmplice e não abre. Aperto o botão e o calor de verão nordestino invade a geladeira dos potentados. Não o deixo falar. Vou logo vendendo o serviço que ele não pediu. Baixo sua pálpebra, palpo seu pescoço suado, peço que abra a boca: AH!. “O.k., tá tudo bem contigo”. Aperto o botão de cima e o vidro sobe. O sinal finalmente abre e eu arranco deixando-o de boca aberta e a mão vazia.