quinta-feira, 1 de março de 2012

Flanelinha


Um descuido para mudar a faixa do rádio e pronto: o pequeno rodo passeia de um lado a outro banhando meu pára-brisa. O sorriso sem dente não ouve meu dedo que, imitando o limpador, tenta em vão dispensar o serviço não requisitado. Finjo que procuro algum nos bolsos e no console. O rapaz, depois de enxugar as últimas gotas que se acumularam no canto, se aproxima do vidro lateral e pede - sua voz entra abafada, bem do fundo de sua declarada miséria - dez centavos para completar o almoço. Abro os braços e as mãos: “Eu te avisei que não tinha”, falo devagar para que ele faça a leitura labial. Insistente, pede que eu baixe o vidro. O sinal é seu cúmplice e não abre. Aperto o botão e o calor de verão nordestino invade a geladeira dos potentados. Não o deixo falar. Vou logo vendendo o serviço que ele não pediu. Baixo sua pálpebra, palpo seu pescoço suado, peço que abra a boca: AH!. “O.k., tá tudo bem contigo”. Aperto o botão de cima e o vidro sobe. O sinal finalmente abre e eu arranco deixando-o de boca aberta e a mão vazia.  

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