quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Fitness com o Cão

Findo o programa desligou a TV e foi pro quarto. Abriu o guarda-roupa e, diante do espelho da porta, passou a se analisar, conforme sugeriu a moça da TV. Tirou a blusa e se indignou com as estrias e os pneuzinhos laterais. Agora a saia. Lá estava a famigerada celulite e a bunda arriada. Os braços não passaram no teste do adeusinho. Inconformada com a silhueta lembrou-se da receita da doutora: comer menos e gastar mais calorias. Passar mais fome, impossível. Restavam-lhe os famigerados exercícios. Academia nem sonhar, com o seu salário mínimo! Andar era a solução mais prática, saudável e barata, ensinava a curvilínea professora do vídeo.
Dia seguinte, tão logo chegou do trabalho, botou short, camiseta e tênis, mas não conseguiu passar do portão. A rua escura e deserta não era nada convidativa. Desistiu da caminhada. Tomou um belo copo d’água e foi dormir. Acordou de madrugada com um furo na barriga que entupiu com meio pacote de creme-cracker. Às cinco horas, com as calorias queimando sua consciência, deu uma olhada na rua. O céu ainda começando a clarear não oferecia segurança. Esperou meia-hora e tentou novamente. A rua começava a se animar. Tinha apenas vinte minutos, mas já era um começo. Tão logo pisou a calçada, passou um caminhão lotado de operários em enorme arruaça: assobios e gritos de "gostosa". Desistiu.
Chegou desolada no trabalho. Desabafou com as colegas. “Queria perder uns quilinhos que estavam sobrando, mas não tinha coragem de caminhar sozinha na rua”. “Procura companhia mulher!”, sugeriu a sarada colega.
Deixou a bolsa em casa, correu à vizinha e fez o convite. “Bem que eu tinha vontade, mas esse esporão no calcanho me incomoda até nos afazeres de casa!”. No jardim o cachorro da vizinha veio brincar com ela. Afagando-lhe o pêlo, achou a solução. “Tudo bem”, concordou a vizinha.
Guiada e protegida pelo pastor, sentia-se segura. Nem ligava quando o rapaz da padaria elogiava o cão e perguntava pelo telefone do animal. “Ô piada mais sem graça”, ressabiava e seguia calada. Todo santo dia era a mesma coisa.  “Dá o número do bichinho vai!”, implorava o moço, e ela nem dava bola.
Passado três meses consultou novamente o espelho e ficou animada com o progresso. Comprou uma malha de ginástica com o décimo. Queria mostrar ao mundo e ao moço da padaria suas orgulhosamente conquistadas curvas.
“Vendi o cão, minha filha”, a vizinha deu a notícia com uma entonação de pesar. Desolada, mas animada pela nova silhueta, enfrentou o medo. Chegou incólume a calçada da padaria. O moço estava lá, sentado no caixa. Passou bem devagar e nenhuma reação da parte dele. Seguiu caminho. “Não me viu”, pensou e acelerou o passo.
Nos dias seguintes a mesma coisa. O rapaz olhava pra ela e não dizia nada. Resolveu tomar a iniciativa. “Não vai perguntar pelo cão?”. “Ah, paguei à tua vizinha um bom preço por ele, os menino estavam já me deixando doido”, e
se virou para atender uma cliente. 

terça-feira, 29 de novembro de 2011

Investigação

Acordou cedo com aquilo na cabeça. O dia terminou e nenhum pensamento alheio ocupou o lugar daquilo em sua mente. Isto não o impediu de ter um dia normal, embora este não tenha sido nada rotineiro, pelo menos conforme os relatos das pessoas que tiveram com ele naquele dia. Segundo a mulher, após o café da manhã que comeram juntos, coisa rara nos dias da semana, deu-lhe um inusitado beijo de língua, disse que a amava e saiu. Aquele tinha sido um dia maravilhoso para ela: os filhos chegaram famintos do colégio, fizeram o dever de casa sem reclamar e dormiram cedo, acrescentou ela, apesar de não ter sido interpelada sobre o assunto. O motorista do ônibus disse que ele estava na parada na mesma hora de sempre, pagou metade da passagem inteira de um estudante que esquecera a carteira em casa e se sentou no banco imediatamente atrás dele. Pelo retrovisor viu durante toda a viagem seu sorriso estampado no rosto. O trânsito estivera inexplicavelmente calmo naquela manhã; largou o serviço cedo, pois o encarregado não mandou que fizesse hora extra. A colega de escritório relata que ele a convidou para almoçarem em um restaurante do centro da cidade; beberam uma garrafa de um bom vinho português; ele pagou a conta e voltaram para o serviço. Ela confessou que se ele a tivesse convidado, teria ido a um motel depois do almoço. A frustração foi recompensada a noite com o melhor sexo que tivera com o marido em dez anos de casada. O seu chefe conta que ele saiu tarde do trabalho, fizera algumas ligações para o exterior e fechara uma transação espetacular com uma firma da Itália; o presidente da empresa autorizara um gordo bônus para os dois. O último depoimento foi do engraxate que faz ponto na beira-mar, onde ele se sentara para dar um polimento no sapato. Terminado o serviço ele lhe dera uma nota de cinquenta e disse que poderiia ficar com o troco. O menino correu pra casa levando duas pizzas gigantes que fez a festa de aniversário de sua mãe. Seu mundo virou um grande quarto escuro e enquanto ele ainda pensa naquilo, muitas pessoas lembram com amor daquele homem que um dia espalhou a felicidade pelo mundo.  26/02/02.

segunda-feira, 28 de novembro de 2011

Carente de Saudade

Quando você chegou
Meu mundo
Ficou mais belo.

Não quis mais nada:
Comer,
Dormir.
Passei a viver
De teu amor.

Ontem você se foi.
Comi o suficiente,
Dormi sono inteiro,
Acordei bem tarde,
Carente de saudade.


21/02/03.

sexta-feira, 25 de novembro de 2011

Briga de Casal

Depois do segundo uisque ele explode aborrecido:
-         Se esse cara olhar de novo pra cá, não me responsabilizo pelos meus atos.
-         De quem você esta falando?
-         Vai dizer que ainda não notou?
-         Eu hein. Sei lá que cara é esse.
Aponta o queixo pro homem muito bem vestido do outro lado do restaurante.
-         Sim, estou vendo. Que tem ele?
-         Não para de olhar para nós.
-         E o que tem demais. Vai ver é um desses caras que gostam de observar os outros. Um psicólogo ...
-         E aquele sorriso meio cínico?
-         Provavelmente está rindo do seu terno, ou do meu vestido.
-         Não seja tola. Não tem nada de ridículo em nós.
-         Tá bom. O que você acha que ele tá olhando?
-         Sei não. Mas acho que esta te paquerando. Talvez até te conheça e esteja rindo do corno aqui.
-         Agora você foi longe demais. Tá me ofendendo.
-         Então me explica você.
-         Você é um neurótico, psicopata, paranóico.
-         Mas não sou chifrudo.
-         E como você tem tanta certeza disto?
-         Tá vendo. Você acaba de confessar. Sua piranha.
-         Piranha é a vovozinha, seu brocha.
-         Eu te mostro o brocha!
Levanta, faz que abre o zíper, mas se contem.
-         Tá bom, acho que exagerei. Me desculpa.
-         Você anda muito nervoso. Deve ser o excesso de trabalho. Que tal dispensarmos o jantar. Vá pra casa descansar. Eu pego um taxi.
-         Tudo bem. Quanto é ?
-         Me dá só metade!
-         Tchau. Te ligo outro dia.
-         Tchau garanhão!!!


quinta-feira, 24 de novembro de 2011

Voando baixo pela praia encantada


Voando baixo pela praia encantada
Sigo meu pensamento sem rumo
E sem preconceitos.
Deixo-me navegar pelo mar do instinto,
Sem saber aonde vou dar.

Não importa meu destino;
Quero o prazer da viagem sem volta,
Do beijo roubado à menina que ficou indignada
E se pôs a chorar.

Quero a ausência do remorso,
A alegria do crime perfeito
Por ter sido realizado,
Não por ter me deixado rico.

Hoje não quero pensar.
Quero mergulhar no improvável,
Amar mais do que amanhã,
Conhecer o sabor do impossível,
Invadir o paraíso e comer a maçã.

Não tenho motivos para ser bom,
Nem vontade de ser mal.
Só quero a liberdade de me prender
Na solidão e não ter de explicar
Minha razão sem sentido.

Quero no encontro com a morte
Convencê-la que devo viver.
Não vou implorar nem chorar,
Pois posso rir de tudo e de todos,
Até mesmo de mim.
11/02/03.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Caixa Eletrônico.

As filas de bancos diminuíram com a expansão das caixas eletrônicas. Atualmente precisa-se ir menos às agências bancárias que, exceto em dias de pagamentos, estão relativamente vazias. Não tem sentido se perder horas em uma fila para sacar o dinheiro da cerveja do fim de semana. Hoje se faz quase tudo no caixa ou pela Internet. A tecnologia facilita enormemente a vida. Você passa o cartão na fenda da máquina, escolhe a opção desejada, aperta uns poucos botões, preenche lacunas na sequência solicitada e pronto: lá vem o dinheiro, o extrato ou o recibo de pagamento. Nada mais simples para quem nasceu na geração cibernética. Mas será tão simples assim para os idosos? A maioria mal lida com o controle da TV, exceto para ligar-desligar e trocar canais. SAP, timer, program e close caption são mistérios ainda não desvendados. Quem nunca assistiu impaciente na fila da caixa eletrônica os apuros da velhinha diante dos botões? É um passa-repassa de cartão. Cancela daqui, senha inválida dali, operação não concluída invariavelmente. Dá vontade de ajudar a coitada, mas o receio de passarmos por malandros nos planta nervosamente na fila que não anda. Agora vai, nasce uma esperança. Mas o dinheiro teima em não sair. Ela parece desistir, tem o desespero no olhar, mas tenta “pela última vez”. Não pede ajuda, o moço do banco disse que é perigoso. O senhor na porta parece tão sério. Não, agora consigo! O zum-zum-zum é geral. Um demonstra pena, outro indignado pergunta por que mandam uma velha coroca mexer com o que não sabe. Finalmente deixa o caixa. Conseguiu vozinha, pergunto com delicadeza. Ela p... da vida responde. “Que nada, diz que falta um tal de crédito”.

terça-feira, 22 de novembro de 2011

Beleza


Não posso viver
Sem a noção da beleza,
Sem o cheiro da pele macia
Sem o toque morno
De dedos carentes.

Tudo é tão real
Que me dói.
Por que viver
Com os pés no chão
Se este não possui
A maciez do carinho,
A aventura da paixão,
Por si só platônica,
Sem a loucura do desejo?

Definitivamente
Renego o feio;
A feiura da inveja,
Da cobiça,
A amargura do poder,
A fome do querer.

Prefiro o vermelho da rosa,
O branco fingido da pena,
O falso azul sereno do céu.              

27.05.06

segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Fundo do Poço

Porque nunca
Pedi para ser feliz,
Nem mesmo implorei
Por amizade.

Porque nunca lutei
Por tudo que quis,
Sequer chorei
Lágrimas de verdade.

domingo, 20 de novembro de 2011

Dono de Casa

As estatísticas mostram que é cada dia maior o número de mulheres que trabalham e sustentam o lar. Com a informatização e robotização a indústria requer menos a mão do homem. Triste fim para quem, segundo Engels, proporcionou a evolução da espécie humana. A educação e a diminuição do preconceito colocaram a mulher em pé de igualdade no mercado de trabalho. Os homens se vêem diante de uma situação inusitada para o macho de outrora: ser sustentado pela mulher e assumir o cuidado da casa e dos filhos. Muitos não se conformam, reagem de forma agressiva ou caem no alcoolismo. Outros se adaptam muito bem, se revelam ótimos donos de casa e suplantam as destituídas rainhas do lar.
Ela reclama do sono, mas cede diante do desejo dele. Após o amor na madrugada, hora de levantar. Ela toma banho enquanto ele prepara o café que bebem juntos com pão e margarina. Vestem-se e vão pra parada do ônibus. Dá gosto ver os dois pombinhos espremidos no poste. Bitocas e cheirinhos no cangote. É de fazer inveja a quem passa, com saudades do próprio tempo. A lotação chega e ela sobe. Da janela acena pro marido. Volta pra casa, tira a roupa, bota um calção e vai lavar a louça do café. A tarde ela liga do trabalho, “Amor, esqueci de te avisar. Vou chegar mais tarde. Hoje é a confraternização de Natal da firma. Tchau, beijo”. Baixa o telefone, se deita no sofá e liga a TV. “Oba, hoje não preciso preparar jantar”.    

sábado, 19 de novembro de 2011

Morrer ou não morrer, não existe esta questão.

A morte é tão lógica quanto inevitável. Ao lembrarmo-nos dela automaticamente aflora a pergunta: vale a pena viver? A resposta é tão inútil e irracional quanto a própria vida. Sendo assim, pra que viver? Melhor não pensar pra responder. Somos todos suicidas em potencial. Sublimamos e fugimos deste dilema nos consolando com os bons momentos, menos numerosos do que gostaríamos, mas afinal prazerosos. A morte paira entre o tudo e o nada, algo incompreensível para nossa pobre e mesquinha razão. A morte, nosso maior dilema, é a solução para tudo, especialmente para o medo que temos dela. Ela é a própria verdade, a razão na sua mais pura essência, o que existe de mais concreto. Por que então a tememos? Porque somos irracionais a ponto de amarmos a vida, o que temos de mais fugaz. Aprendemos que a vida é um dom divino. Consideramo-nos criaturas divinas, sem atinarmos como isso nos rebaixa e humilha, nos transforma em mero produto de uma fonte criadora. A vida não é um dom, é uma situação, um acaso. Ela não nos foi dada, ela é um produto da evolução. Provavelmente desaparecerá em bilhões de anos com a desintegração do universo, o outro Big-Bang. De nada vale teorizarmos sobre a origem da vida. Na prática vivemos a espera da morte. São insignificantes nossos atos. A ética não influi sobre a morte. Já que estamos aqui e agora, devemos aproveitar o momento, cada um da melhor maneira. Vivendo em sociedade, temos que exercer nosso direito a vida, com a obrigação de não prejudicarmos os outros. Não falo aqui da obrigação de amar ao próximo. Falo de tolerância com a vida dos seres humanos. Tolerar a vida é essencial para entendermos e aceitaremos a morte.
No fundo, tudo que foi pensado, escrito e debatido foi inspirado na morte. Todas as religiões buscam o sentido da vida e tolerância para com a morte. A Razão humana, através da ciência, busca dar solução e entendimento ao incompreensível. O que esperar de seres tão imperfeitos? Se o egoísmo, inerente a todo homem, foi vital para a sobrevivência da espécie no planeta Terra, o orgulho vivificado na pretensão de sermos imortais é a fonte de nossas frustrações, desamor e medo.   

quinta-feira, 17 de novembro de 2011

Bolsa Família - Um Mal Necessário?

O mundo político mudou depois da queda do muro de Berlin. O fim do império socialista trouxe a impressão que só há um modelo, o do capitalismo, para a economia mundial, entretanto a crise que se abateu sobre o mundo financeiro em 2008 e que ainda se mantêm até hoje, como mostra a mais recente queda da bolsa, deixa dúvidas quanto a veracidade da morte definitiva do socialismo. Ao tomarmos a teoria evolutiva como aquela que mais de perto explica a origem das espécies e do homem, fica evidente que na luta pela vida são os mais fortes os grandes vencedores. Ao olharmos a natureza e os seres vivos que a congregam percebemos este fato de forma indubitável, porém jamais veremos o que diferencia a espécie humana de todas as outras, o acúmulo de riqueza. Os mais fortes detêm o poder e têm mais facilidade na perpetuação de sua prole, mas deixam aos mais fracos o que lhe é supérfluo, as sobras de suas conquistas. O excedente faz toda diferença. Não à toa as economias do mundo desenvolvido possuem uma divisão de renda bem mais justa entre seus cidadãos. O que torna os países subdesenvolvidos como o Brasil não é seu PIB, temos o sétimo(?) maior do mundo, mas a grande proporção de pobreza e até de miséria de seu povo. Por isso é tão fácil defender os programas sociais do atual governo. Lula nasceu politicamente com a idéia de que o socialismo era o único sistema capaz de gerar justiça social. E em suas várias tentativas de chegar ao poder descobriu que a sociedade simplesmente não aceitava esta proposta. Ao amenizar o discurso e se engajar no mundo da globalização da economia finalmente chegou ao comando do país e continua prestigiado pela população de baixa renda e pela comunidade mundial preocupada com o futuro da economia global. É fácil acusá-lo de ter mudado o discurso, difícil é entender que foi o melhor ou mais fácil caminho. Alguém vai argumentar que ele se vendeu pelo poder, crítica que partindo dos socialistas históricos como o PSOL é perfeitamente justa, mas vinda dos capitalistas de carteirinha cheira a despeito. Não são eles os advogados da lei dos mais fortes e espertos? Por isso defendo e aprovo o Bolsa Família(BF). Não o encaro como  estímulo à preguiça, mas como uma  forma imediatista de promover uma melhor divisão de renda e debelar a fome e a miséria dos mais necessitados. Não creio que existam muitos que trocassem um bom emprego por uma dita “esmola”. Entretanto os mesmo que criticam o BF são incapazes de dividir lucros, pagar horas extras, estimular a formação profissional e cultural de seus empregados. E quando se fala em redução de jornada de trabalho é um deus nos acuda; esbravejam como se a redução em 5% de seus lucros os levassem a falência. É certo que a carga tributária é alta, mas é a que a sociedade exige. É verdade que o governo gasta mal os recursos do estado, mas quem usufrui das supervalorizações são os grandes empresários. É difícil. Num mundo tão tecnológico como o atual, onde o humano é cada vez mais dispensável, o trabalho tende a ficar cada vez mais escasso. Estamos deixando a Era das necessidades e imergindo na Era do Supérfluo. O mundo gira em torno da moda, do bonito, do gostoso. O futebol e o esporte em geral vivem exclusivamente do comércio. A própria medicina há muito se rendeu ao universo do lucro com a indústria dos medicamentos milagrosos, dos cosméticos de efeitos duvidosos, das cirurgias de alto risco com finalidades estéticas, dos exames laboratoriais substituindo a clínica, da indústria dos internamentos. A economia não pode parar. O dinheiro tem de circular e as necessidades estão sempre se multiplicando. O mundo capitalista vai se mantendo propagando a idéia que só a alta produtividade pode proporcionar uma vida digna. É verdade, o trabalho é a função básica de todo ser vivo. As plantas e os animais não ganham sem algum esforço sua subsistência. Ninguém deveria pedir esmolas, mas infelizmente muita gente precisa de uma mão que a socorra e ninguém perde a dignidade por receber uma ajuda. 

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

A Propósito de "Criação Imperfeita" de Marcelo Gleiser

A finitude da potencialidade do cérebro humano, ser vivo de história ignóbil diante dos bilhões de anos de vida conhecida, esbarra na infinitude do universo. As dimensões são tão discrepantes que torna qualquer tentativa de explicação mero exercício imaginativo. Deus foi a primeira dessas tentativas, oriunda da mente primitiva dos primeiros humanóides que imaginaram ser os fenômenos naturais inexplicáveis frutos das mãos poderosas de seres sobrenaturais que habitariam uma esfera acima de sua realidade. Criaram um criador tão inexplicável que tiveram que inventar algo que ultrapassasse o conhecimento adquirido através dos sentidos e da observação: a fé. Apesar do enorme avanço na capacidade mental do ser humano, a grandeza espacial e temporal do universo impossibilita o surgimento de respostas definitivas para a questão da origem do tudo em vez do nada, fazendo com que a teoria de um deus, que tudo criou, mas não foi criado, tenha permanecido como idéia viva até os dias atuais e certamente por milhares de anos vindouros.  11.03.10

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Filipe aproveita aniversário e faz despedida da casa.

Respeitável público. Boas vindas aos queridos amigos visíveis, bem como àqueles espiritualmente presentes. É com um misto de tristeza e expectativa que lhes anuncio a despedida e o desmontar desta lona. O circo agradece muitíssimo a todos que se apresentaram neste picadeiro, deixando sua mais sincera e extraordinária contribuição. Mas a emoção me cala as palavras e recorro à ajuda daqueles que, dissimulados pelo rigor da matéria não viva, absorveram inúmeras e inesquecíveis lembranças de uma infância bem mais que feliz, e hoje podem transmitir com propriedade toda emoção vivida ao longo destes saudosos anos. Que falem as bicas que esperavam um ano inteiro pelas chuvas de fevereiro para massagear as nucas e lavar as almas dos saltitantes palhaços que corriam irrequietos de uma para outra, buscando experimentar o que cada uma tinha de melhor. Que fale o piso do alpendre de sua inopinada metamorfose em tobogã, brinquedo criativo dos irreverentes escorregadores de bucho. Os batentes ainda riem das topadas dos incautos palhaços que neles deixaram muitos chabocos de dedos. Pra que chorar, não há ferida que o tempo não cure. A grade da porta vem aqui dar seu testemunho de espanto, pois nunca entendeu sua fama de esconderijo infalível. O espírito da casa do compressor, velho morador do antigo corredor que dava pra casa do Vovô, vem revelar o segredo do grande truque de tele transporte para o circo vizinho, razão de enorme admiração dos pequenos primos. A escada também tem muito a dizer, mas prefere ficar calada, intimidada que está por ver-se preterida por um solene elevador.


O espetáculo ganhará alturas,
Com sessões a sete andares do chão,
Mais de perto de Deus e das novas criaturas,
Novo picadeiro para nosso amor e emoção.

Meu horizonte agora
Não conhece limite
Vai muito mais além.
Sou enfim um palhaço adulto
Mas filho que aprendeu com o pai
O passo firme e doce do bem.  

segunda-feira, 14 de novembro de 2011

Doido por ela.

A rosa se fecha
E a mulher fraqueja
Enquanto o homem
Anda doido
Atrás de uma cerveja.

A lua se esconde
E o sol não lampeja,
Enquanto o homem
Anda doido
Atrás de uma cerveja.

O trânsito não anda
E o sinal sempre fecha,
Enquanto o homem
Anda doido
Atrás de uma cerveja.

O feijão não tem sal
O pudim sem ameixa
Enquanto o homem
Anda doido
Atrás de uma cerveja.

O olho não pisca
E a boca nem beija
Enquanto o homem
Anda doido
Atrás de uma cerveja.

A música se cala
O ouvido se queixa,
Enquanto o homem
Anda doido
Atrás de uma cerveja.

Tudo ganha brilho
A mulher já deseja
Quando o homem enfim
Se encontra com a cerveja. 

sábado, 12 de novembro de 2011

Recomendo: "Solar" de Ian McEwan.

A VIDA - BEM COMO O MUNDO E TODA MATÉRIA - ESTÁ CONDENADA A EXTINÇÃO. Se tivéssemos a capacidade de expandir nosso pensamento e projetar-nos no infinito, perceberíamos que o tempo é uma dimensão incompreensível em sua imensidão. Aceitando o fenômeno de alternância continua e infinita do binômio Big Bang + Big Crunch, poderemos visualizar a existência de infinitas possibilidades de universo. Compreender que somos finitos é importante e necessário para quem não tem a ilusão da vida imaterial. A preocupação com a saúde do planeta é tão necessária quanto inútil e se assemelha a nossa preocupação com nossa saúde. A medicina e a ecologia estudam dimensões diferentes do mesmo problema: entender como funciona nosso corpo e nosso ecossistema para tentar prolongar ao máximo a existência do corpo e do planeta. Impossível prever onde iremos chegar, que grau de tecnologia atingiremos em séculos por vir, mas inexoravelmente estamos fadados à extinção. Se o fim é a morte, por que devemos cuidar de nossa saúde e do planeta? Certamente ninguém espera alcançar a eternidade se alimentando bem, evitando drogas e fazendo exercícios regulares. Fazemos isso pensando somente em prolongar nossa existência, proporcionarmos um pouco mais de tempo para respirar o mesmo ar que nossos seres queridos e poder amá-los, ver nossos filhos e netos realizados e felizes e podermos dizer adeus com a doce sensação de missão cumprida e com o máximo de sonhos realizados. O mesmo devemos fazer com nosso planeta. Muito do aquecimento notado é fruto de ciclo natural do sistema cósmico em que está incluído. É conhecido que a Terra já passou por ciclos de congelamento e aquecimento e muito mais espécies foram extintas que as conhecidas na atualidade.  Entretanto nossas atividades produtivas estão acelerando este processo natural. Não creio que esta e as próximas gerações experimentarão mudanças extraordinárias no clima. Não acredito que um imenso tsunami afogará extensa parte da costa mundial em 2012, como propagam os profetas do apocalipse, embora seja provável de acontecer em locais determinados como a Indonésia. A subida do nível do mar vem acontecendo há séculos e é responsável, junto com a movimentação das placas tectônicas, pela constante mudança na geografia dos nossos continentes. Conhecendo estes fenômenos devemos continuar poluindo nosso ar, destruindo matas e transformando nossas cidades em grandes lixões? Certamente que não. Devemos sim lutar por uma melhor qualidade do ar que respiramos, por um ambiente limpo e agradável de viver, por rios límpidos e cheios de vida. Queremos um lugar mais saudável e prazeroso para nosso corpo - que a cada dia ganha mais sobrevida - aproveitar a pequena fração que faz jus no infinito cósmico.   

sexta-feira, 11 de novembro de 2011

Hora de Partir

Quando a chuva parou
você suspirou
e disse adeus.

Feliz
quem descansa
e deixa a esperança
no abraço dos seus.

(01.02.09)

A eternidade mora na lembrança.

Saudade 

Coisa danada
É saudade
Bicho que gruda
E não sai.
Qual caminho
Que nunca se muda,
Qual carinho
Da mão forte do pai.
Saudade é a
Presença na ausência
Último presente de quem partiu.
É o recheio doce que preenche
O lugar que ficou vazio.


27.10.09

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Coração tão branco ( Livro de Javier Marías)

" ...corremos graves riscos quando falamos". ( Lavoura Arcaica de Raduan Nassar)


Os fiéis pedem na oração perdão pelos pecados cometidos por atos, palavras ou omissões. Parece ser fácil, diante de Deus ou seu representante na terra, professar o pecado cometido, já que diante da infinita misericórdia do todo-poderoso, o perdão é tido como certo. Outra coisa é encarar a lei dos homens, onde o perdão não é concedido antes do merecido castigo: anos de cadeia, execração pública, vergonha, desonra. Quem comete um crime quer escondê-lo, guardá-lo a sete chaves no mais remoto recanto da própria memória. Todo crime merece seu castigo, assim como todo ato pede para ser anunciado. Aí entra a palavra, esta entidade que exige público, ser que nasce necessariamente de uma intenção, consequência de um ato, mas que ganha autonomia após ter sido proferida e ninguém, nem mesmo uma retratação, pode calá-la ou modificá-la. Enquanto o pecado é calado pelo silêncio temporário do segredo, tudo que permeia o ato acaba em dúvida, outra vítima do segredo e da ausência da palavra. E o que falar da palavra sem o ato? Tem culpa quem usa a palavra em vão? Existe palavra sem intenção e intenção sem pecado? Tem o coração puro aquele que soltou o bicho preso e triste que mordeu o vizinho na sua euforia de liberdade? Os atos pedem punição, assim como as palavras pedem ouvidos. Diante de um crime não existem inocentes, todos têm as mãos manchadas de sangue, mesmo que teimem em declarar branco o coração. 23.02.11

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Almoço sob a Mangueira - Conto publicado na Antologia Sobrames 2010



Todo meio dia de quarta-feira José larga o caixa da farmácia, atravessa a rua e senta no banco da praça em frente para esperar o menino que vem trazer seu almoço. Enquanto o sol forte queima o em torno da sombra formada pela frondosa mangueira José lembra o passado que tem poucos meses a mais que a idade do menino.
José trabalhava e morava no quartinho dos fundos da pensão de seu Manoel, onde era servida a melhor comida caseira da cidade, fama obtida graças aos dotes culinários de Dona Maria, sua mulher. Vez por outra, indignada pelas marmotas do marido, que nunca foi imune aos requebros das caboclas, Dona Maria fazia greve, se trancava no quarto e se recusava a cozinhar. Nestes dias, José salvava a pátria do patrão e preparava o almoço. Todos notavam o tempero diferente, mas ninguém reclamava, até elogiavam a mudança do sabor. Seu trabalho mesmo era o de servir as mesas, limpar o salão e lavar os pratos, tarefa que dividia com Joana, a filha do casal, moça bonita, cheia de redondezas, mas que vivia de queixo no peito, era a timidez em pessoa. Enquanto os pais e patrões tiravam a sesta e faziam as pazes eventuais, os dois davam conta do serviço lá embaixo. Depois de tanto vai e vem, passa por lá que eu passo cá, colher que cai, prato pra enxugar, deixa que eu limpo, arrasta a cadeira para eu varrer, quer um doce, passa um café, os dois acabaram se embarrando. José arrastou a menina pro quartinho e fez a felicidade dos dois.
 O domingo era um dia triste para José. Seu Manoel levava a família para almoçar no restaurante do clube, onde não economizava para mostrar que estava bem de vida e de dinheiro e atrair bons pretendentes para a filha entre os filhos das famílias de bem da região. José ficava no seu quarto lendo revistas, assistindo TV na cozinha, adiantando um serviçinho pro dia seguinte e dormindo na sua rede depois do almoço até tarde da tarde. O tempo foi passando devagar e o amor dos dois só aumentava, mas cadê coragem de falar com os pais da moça.
No fim do ano, terminado o segundo grau na capital, João, o irmão mais novo de Joana, retornou à cidade. Seu Manoel estava tão feliz com o retorno do filho que Joana decidiu por fim às suas inquietações.  Por via das dúvidas mandou que José saísse de casa e só voltasse pela manhã quando os ânimos estivessem arrefecidos pela noite de sono. Depois do jantar, levantou os olhos do prato e disse que ia se casar. Manoel arregalou os olhos para Maria que estava tão perplexa quanto ele. Os dois correram até a filha, abraçaram-na, beijaram-lhe as faces e sem mais delongas quiseram saber quem era o futuro genro. Joana baixou novamente os olhos, se desvencilhou devagar dos braços dos pais e disse bem baixo: é o Zé. Manoel empurrou longe a mulher, virou a mesa com tudo que havia em cima deixando João aos gritos com o café quente que lhe queimou o peito. Correu até o quarto de José, revirou tudo e voltou bufando, gritando que o moço não punha mais os pés na sua casa, que estava despedido desde já. Sacudiu Joana pelos ombros e quis saber o que eles tinham feito, não era possível que ela tivesse se entregado a um sujeitinho tão desqualificado. Sem tirar os olhos do chão, Joana gaguejou o exato que o pai não queria ouvir. Desesperado Manoel correu até o quarto e voltou de arma em punho. Joana se ajoelhou, pediu perdão, misericórdia, amava José e ele a amava também, queriam endireitar o mal feito; José respeitava muito Manoel, era trabalhador e homem de confiança, tudo ia se arrumar depois do casório, ela já estava passando da idade de casar e ter filho e nenhum moço da cidade lhe despertava afeição como o Zé. Sem ouvir uma vogal sequer do testemunho da filha, Manoel pegou-a pela gola do vestido e arrastou-a até o quarto, sem ouvir os apelos de João, que pedia calma ao pai e compreensão para com a irmã. Trancada no quarto, Joana teve ainda que ouvir os resmungos da mãe que se quedou no pé da porta lamentando o comportamento da filha que havia envergonhado a família. Sentado a mesa da cozinha com o revólver em punho, Manoel mantinha-se surdo aos apelos e conselhos arrazoados do filho.
O sol queimava devagar a pele do mundo quando José chegou à pensão. Nenhum pensionista ainda descera pro café. Ao entrar na cozinha viu Seu Manoel dormindo entre a garrafa de pinga pelo meio e o copo revirado na mão direita. O revólver dormia tranqüilo sobre a mesa qual cão amordaçado, nenhum gatilho mete medo sem um dedo para apertá-lo. José não titubeou, pegou a arma e, protegido pelo poder adquirido, soltou um sonoro e seguro bom dia. Atordoado, Manoel acordou num sobressalto e procurou em vão a arma. Sem notar que ela estava agora em poder do adversário, cego que estava pelo ódio, partiu com todo furor para José, agarrando-o pelo pescoço. No exato momento que João, acordado pelo barulho, cruzava a porta da cozinha, um tiro veio apagar o harmonioso canto dos pássaros, sinfonia gratuita com que a natureza saúda o astro rei. O filho correu a socorrer o pai que resmungava, com um terrível bafo de cana, impropérios contra a filha e seu amante, enquanto a mancha vermelha ganhava centímetro a centímetro cada palmo de sua camisa. Joana chegou ofegante, ainda de camisola, e vendo a cena só soube gritar um estridente “não”. Abraçou José, tomou a arma de sua mão e entre lágrimas de horror mandou que ele fosse embora, fugisse para bem longe, tudo estava perdido. Indiferente aos apelos da amada José mantinha-se paralisado, olhando fixo para o vazio, balbuciando que fora sem querer, não tinha tido intenção. “Seu Manoel parecia louco, veio direto para mim, agarrou meu pescoço, nem percebi quando virei a arma e atirei”. João permanecia alheio a tudo em seu redor, se concentrava em apertar a barriga do pai e segurar sua cabeça. Quando esta finalmente pendeu e Manoel deixou de respirar o filho se virou para o empregado e gritou-lhe a inexorável palavra: “assassino”. Acordado para a realidade José saiu correndo da pensão se desvencilhando dos curiosos que se aproximavam. Correu sem rumo enquanto tentava pensar. O mundo girava em sua cabeça, não queria acreditar que matara o homem que lhe acolhera na cidade, lhe dera um emprego e um teto e acima de tudo era o avô de seu futuro filho. De repente suas pernas estancaram impedindo-o de dar um passo a mais. Estava diante da delegacia. O guarda veio até lá fora e perguntou se ele vira algum fantasma, “Tu ta branco que nem vela home”. José subiu os dois degraus que o separava do soldado e disse com o olho vidrado no olho do outro: “Eu matei o Seu Manoel”.
O julgamento foi rápido. Mesmo alegando legítima defesa José pegou dez anos graças aos esforços jurídicos de João que nunca se conformou com a morte absurda do pai. Nos quatro que cumpriu nunca recebeu visita. Não tinha família e ninguém que sentisse falta dele, só Joana, mas esta estava proibida pela família de sequer mencionar seu nome. Enquanto durou sua pena recebeu toda quarta-feira uma caixa com comida, revistas, livros, sabonetes, xampu, coisas simples do dia a dia que faz enorme diferença para dignos hóspedes do sistema prisional, tudo de fonte declaradamente desconhecida.  Cumprido quatro anos de pena foi solto por bom comportamento. Com o pé na liberdade não pensou duas vezes no seu destino. Com a coragem dos inocentes foi procurar Joana, queria ver o filho. Mas João fora avisado da soltura do assassino do pai e o esperava com um punhado de cabras dentro da pensão. José saiu de lá todo arrebentado, quase morto direto para o hospital. O delegado foi visitá-lo na enfermaria, mas José se recusou a prestar queixa do ocorrido. Uma procissão de curiosos apareceu para vê-lo, mas José nunca soltou um resmungo contra João. Depois de um mês foi liberado pelo médico, mas teria que fazer curativos diários na ferida na perna que não queria cicatrizar. Foi durante esses curativos que conseguiu emprego na farmácia. Numa dada quarta-feira estava fechando o caixa pro almoço quando viu Joana no outro lado da rua com um menino dos seus cinco anos. A mãe sentou a criança no banco, colocou a marmita no seu colo, afagou sua cabeça, disse algo no seu ouvido e foi embora. José chegou devagarzinho, sentou ao lado do menino, pegou a marmita e a colocou no banco, puxou a criança conta o peito e chorou baixinho com medo de assustá-lo.

13.07.09

Madelaine - Poema prosaico publicado na Antologia da Sobrames 2010

Madelaine

O sol que acaba de despertar
Não desvia minha atenção
Do teu corpo indolente sobre o sofá.
Tua face serena não guarda
Sombras da noite passada.
Teus longos cabelos mancham
De negro teu branco e fino braço
E se espalham escondendo teu colo.
Tuas curvas, cobertas pelo lençol,
Excitam minha imaginação.
Os pés não reclamam calor e se insinuam
Pequenos, magros, unhas bem cuidadas,
Mas sem esmalte, beleza pura e natural.
Pouco te mexes, quase não respiras.
Quisera eternizar este momento;
Não em foto, pintura ou filme.
Mas assim, só pra mim,
Obra de arte divina,
Emoldurada em meu sofá.

22.12.00

terça-feira, 8 de novembro de 2011

Vida Nova - Conto publicado na Antologia Sobrames 2009


Acordou com a ideia fixa de mudar. Não queria mais ser ela mesma. Quebrou todos os espelhos e foi pra cozinha engolir o ódio com um copo de água fria. O marido já tinha saído e quem pagou o pato foi o filho mais novo que foi pro colégio sem merenda e com um galo na cabeça do cascudo que pegou em cheio. De volta ao quarto rasgou em trapos os vestidos seminovos e despejou ralo abaixo o boticário que ganhara no aniversário de casamento. Queria ter outro cheiro, outra aparência, outra cultura, outra consciência. A campainha soou: blim-blaum. Tapou os ouvidos, queria uma cigarra nova. De roupão abriu a porta e chamou o correio pras conversas. Vinte minutos depois o homem saiu assanhado, assustado, arrumando o cinto. Foi insuficiente, queria mais mudanças. Telefonou pro marido que estava em reunião e não pôde atendê-la. Deixou-lhe um recado: ia viajar. Jogou os vestidos quase intactos que sobraram numa valise e chamou um taxi. Desembarcou no aeroporto uma hora depois. Apresentou o cartão pro rapaz e pediu uma passagem para Paris. Zip ..... Zap...... Transação não autorizada. Ficou sem rumo, perdida naquele mundo que ela não queria mais por ser igual demais, insosso demais. Queria a emoção que só o novo traz, a expectativa da criança esperando o brinquedo de Natal. Não se rendeu à dura realidade: se não podia ir para Paris, iria para o lado oposto do glamour. Deu a sacola pro primeiro pedinte que encontrou e saiu andando sem rumo. Quando a fome e a sede apertaram estendeu a mão para o primeiro carro que parou no sinal e recolheu a primeira moeda. Uma a uma as moedas começaram a encher seu bolso. Finalmente sentiu que algo novo se instalara em sua vida vazia, um peso novo; como um tumor recém descoberto e inesperadamente desejado porque fazia diferença, algo estranho e maravilhoso. Sopesou o volume e resolveu que ainda era pouco. Juntou uma porção de pedras, preencheu todo o enorme espaço vazio que ainda lhe restava e mergulhou nas águas de uma nova e inusitada dimensão.

24/05/02.
 

Sem Pecado - Poema publicado na Antologia da Sobrames 2009



Vivo o meu tempo
Sem esquecer que tenho passado.
Não tenho dor na consciência
Nem pena de quem tem.

Amo por amar,
Sem obrigações.
Trabalho com responsabilidade,
Mas só faço o que me dá prazer.

Reconheço meus erros,
Não sou melhor que ninguém.
Não me imputo pecados,
Sequer acredito neles.

Sou fã da beleza,
Mas não desprezo o feio.
Não sou gelo nem fogo,
Prefiro a solidão do meio.

07.10.05 

segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Deusa - Conto publicado na Antologia Sobrames 2011


Pisei fundo no freio e parei rente a ela. O vidro demorou uma infinidade para descer até o fim e ofereci carona: se ela fosse pro inferno, eu a levava lá. “Palhaço”, uma deusa tem direito a tudo, inclusive de xingar seus súditos babacas, que babam feitos bobos diante da prova que Vênus é deusa justa e democrática e espalha sua obra e graça em qualquer lugar do planeta, desde que obviamente ali exista o substrato feminino. O babaca aqui é também obediente e segui meu caminho; não fiquei triste, ao contrário, senti-me lisonjeado pela honra de ter merecido uma palavra, uma única e contundente palavra, mas não passara despercebido por ela, e afinal de contas ser chamando de babaca não é tão ruim assim, ela poderia ter me qualificado de coisa bem pior. Dia seguinte, com o grande e redondo nariz vermelho e sem vergonha nenhuma na cara, lá estava eu novamente diante da parada do ônibus, de agora em diante por mim denominado altar, saudando minha deusa com um respeitoso e sincero “Bom dia”. Desta vez ela me ignorou e virou a cara. Condenado a invisibilidade e recolhido à minha insignificância, passei um mês inteiro diante do altar lançando à minha deusa um olhar pidão de cachorro faminto, sem obter migalha que fosse de sua atenção; como os Deuses são cruéis!
Um dia ela sumiu, devia ter voltado ao Olimpo, chorei mudo e destemperadamente. O asfalto esburacou, as árvores secaram, o trânsito ficou insuportável e o ar-condicionado pifou, a gasolina aumentou três vezes e a inflação disparou. Fui abandonado, lançado ao fogo dos infernos, condenado que fui por minha pouca fé e persistência. Duas semanas se passaram até que ela desceu do famoso monte grego. Lá estava ela, mais esplendorosa, gostosa como nunca, irradiando graça por todos os poros de sua pele morena clara. Usava uma despudorada mini-saia, fato novo para meus famintos olhos de urubu, mas que não tinha nada de estranho, pelo contrário, era até natural, pois uma longa bota gessada calçava a perna e metade da coxa esquerda. Coitadinha, que maldade com minha Deusa! Quando cheguei mais perto, tomei um susto. Com o dedão da mão direita apontado para o céu solicitava minha caridade e ajuda. Uma euforia inicial quis se insinuar, mas um arrepio indignado tomou conta de todo meu corpo. Estendi-lhe o dedo médio bem esticado e pisei fundo no acelerador. Desde então mudei meu trajeto diário. Nós, simples mortais, temos vergonha na cara.
17/01/03. 

Conselho - Poema publicado na Antologia da Sobrames 2011.

Conselho

Um dia
alguém mui jovem
me pediu um conselho.

“ Faças o que te dá prazer,
o que te faz sentir útil,
o que te faz sorrir ao acabar.
Se não for fácil,
não tentes desesperadamente,
até sair sangue,
até morrer.
Aquieta tua alma,
adormece teu corpo,
lambe tuas feridas,
enxuga tuas lágrimas.
Não reclames de ninguém,
não procures culpados;
Deus não pode te ouvir.
O universo é imenso.
e está cheio de problemas
maiores do que o teu.
Manda servir uma pinga,
Paga por um cafuné.
Compra um ou dois elogios
E esquece que existe alguém feliz”.   

11.08.06