segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Deusa - Conto publicado na Antologia Sobrames 2011


Pisei fundo no freio e parei rente a ela. O vidro demorou uma infinidade para descer até o fim e ofereci carona: se ela fosse pro inferno, eu a levava lá. “Palhaço”, uma deusa tem direito a tudo, inclusive de xingar seus súditos babacas, que babam feitos bobos diante da prova que Vênus é deusa justa e democrática e espalha sua obra e graça em qualquer lugar do planeta, desde que obviamente ali exista o substrato feminino. O babaca aqui é também obediente e segui meu caminho; não fiquei triste, ao contrário, senti-me lisonjeado pela honra de ter merecido uma palavra, uma única e contundente palavra, mas não passara despercebido por ela, e afinal de contas ser chamando de babaca não é tão ruim assim, ela poderia ter me qualificado de coisa bem pior. Dia seguinte, com o grande e redondo nariz vermelho e sem vergonha nenhuma na cara, lá estava eu novamente diante da parada do ônibus, de agora em diante por mim denominado altar, saudando minha deusa com um respeitoso e sincero “Bom dia”. Desta vez ela me ignorou e virou a cara. Condenado a invisibilidade e recolhido à minha insignificância, passei um mês inteiro diante do altar lançando à minha deusa um olhar pidão de cachorro faminto, sem obter migalha que fosse de sua atenção; como os Deuses são cruéis!
Um dia ela sumiu, devia ter voltado ao Olimpo, chorei mudo e destemperadamente. O asfalto esburacou, as árvores secaram, o trânsito ficou insuportável e o ar-condicionado pifou, a gasolina aumentou três vezes e a inflação disparou. Fui abandonado, lançado ao fogo dos infernos, condenado que fui por minha pouca fé e persistência. Duas semanas se passaram até que ela desceu do famoso monte grego. Lá estava ela, mais esplendorosa, gostosa como nunca, irradiando graça por todos os poros de sua pele morena clara. Usava uma despudorada mini-saia, fato novo para meus famintos olhos de urubu, mas que não tinha nada de estranho, pelo contrário, era até natural, pois uma longa bota gessada calçava a perna e metade da coxa esquerda. Coitadinha, que maldade com minha Deusa! Quando cheguei mais perto, tomei um susto. Com o dedão da mão direita apontado para o céu solicitava minha caridade e ajuda. Uma euforia inicial quis se insinuar, mas um arrepio indignado tomou conta de todo meu corpo. Estendi-lhe o dedo médio bem esticado e pisei fundo no acelerador. Desde então mudei meu trajeto diário. Nós, simples mortais, temos vergonha na cara.
17/01/03. 

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