quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Almoço sob a Mangueira - Conto publicado na Antologia Sobrames 2010



Todo meio dia de quarta-feira José larga o caixa da farmácia, atravessa a rua e senta no banco da praça em frente para esperar o menino que vem trazer seu almoço. Enquanto o sol forte queima o em torno da sombra formada pela frondosa mangueira José lembra o passado que tem poucos meses a mais que a idade do menino.
José trabalhava e morava no quartinho dos fundos da pensão de seu Manoel, onde era servida a melhor comida caseira da cidade, fama obtida graças aos dotes culinários de Dona Maria, sua mulher. Vez por outra, indignada pelas marmotas do marido, que nunca foi imune aos requebros das caboclas, Dona Maria fazia greve, se trancava no quarto e se recusava a cozinhar. Nestes dias, José salvava a pátria do patrão e preparava o almoço. Todos notavam o tempero diferente, mas ninguém reclamava, até elogiavam a mudança do sabor. Seu trabalho mesmo era o de servir as mesas, limpar o salão e lavar os pratos, tarefa que dividia com Joana, a filha do casal, moça bonita, cheia de redondezas, mas que vivia de queixo no peito, era a timidez em pessoa. Enquanto os pais e patrões tiravam a sesta e faziam as pazes eventuais, os dois davam conta do serviço lá embaixo. Depois de tanto vai e vem, passa por lá que eu passo cá, colher que cai, prato pra enxugar, deixa que eu limpo, arrasta a cadeira para eu varrer, quer um doce, passa um café, os dois acabaram se embarrando. José arrastou a menina pro quartinho e fez a felicidade dos dois.
 O domingo era um dia triste para José. Seu Manoel levava a família para almoçar no restaurante do clube, onde não economizava para mostrar que estava bem de vida e de dinheiro e atrair bons pretendentes para a filha entre os filhos das famílias de bem da região. José ficava no seu quarto lendo revistas, assistindo TV na cozinha, adiantando um serviçinho pro dia seguinte e dormindo na sua rede depois do almoço até tarde da tarde. O tempo foi passando devagar e o amor dos dois só aumentava, mas cadê coragem de falar com os pais da moça.
No fim do ano, terminado o segundo grau na capital, João, o irmão mais novo de Joana, retornou à cidade. Seu Manoel estava tão feliz com o retorno do filho que Joana decidiu por fim às suas inquietações.  Por via das dúvidas mandou que José saísse de casa e só voltasse pela manhã quando os ânimos estivessem arrefecidos pela noite de sono. Depois do jantar, levantou os olhos do prato e disse que ia se casar. Manoel arregalou os olhos para Maria que estava tão perplexa quanto ele. Os dois correram até a filha, abraçaram-na, beijaram-lhe as faces e sem mais delongas quiseram saber quem era o futuro genro. Joana baixou novamente os olhos, se desvencilhou devagar dos braços dos pais e disse bem baixo: é o Zé. Manoel empurrou longe a mulher, virou a mesa com tudo que havia em cima deixando João aos gritos com o café quente que lhe queimou o peito. Correu até o quarto de José, revirou tudo e voltou bufando, gritando que o moço não punha mais os pés na sua casa, que estava despedido desde já. Sacudiu Joana pelos ombros e quis saber o que eles tinham feito, não era possível que ela tivesse se entregado a um sujeitinho tão desqualificado. Sem tirar os olhos do chão, Joana gaguejou o exato que o pai não queria ouvir. Desesperado Manoel correu até o quarto e voltou de arma em punho. Joana se ajoelhou, pediu perdão, misericórdia, amava José e ele a amava também, queriam endireitar o mal feito; José respeitava muito Manoel, era trabalhador e homem de confiança, tudo ia se arrumar depois do casório, ela já estava passando da idade de casar e ter filho e nenhum moço da cidade lhe despertava afeição como o Zé. Sem ouvir uma vogal sequer do testemunho da filha, Manoel pegou-a pela gola do vestido e arrastou-a até o quarto, sem ouvir os apelos de João, que pedia calma ao pai e compreensão para com a irmã. Trancada no quarto, Joana teve ainda que ouvir os resmungos da mãe que se quedou no pé da porta lamentando o comportamento da filha que havia envergonhado a família. Sentado a mesa da cozinha com o revólver em punho, Manoel mantinha-se surdo aos apelos e conselhos arrazoados do filho.
O sol queimava devagar a pele do mundo quando José chegou à pensão. Nenhum pensionista ainda descera pro café. Ao entrar na cozinha viu Seu Manoel dormindo entre a garrafa de pinga pelo meio e o copo revirado na mão direita. O revólver dormia tranqüilo sobre a mesa qual cão amordaçado, nenhum gatilho mete medo sem um dedo para apertá-lo. José não titubeou, pegou a arma e, protegido pelo poder adquirido, soltou um sonoro e seguro bom dia. Atordoado, Manoel acordou num sobressalto e procurou em vão a arma. Sem notar que ela estava agora em poder do adversário, cego que estava pelo ódio, partiu com todo furor para José, agarrando-o pelo pescoço. No exato momento que João, acordado pelo barulho, cruzava a porta da cozinha, um tiro veio apagar o harmonioso canto dos pássaros, sinfonia gratuita com que a natureza saúda o astro rei. O filho correu a socorrer o pai que resmungava, com um terrível bafo de cana, impropérios contra a filha e seu amante, enquanto a mancha vermelha ganhava centímetro a centímetro cada palmo de sua camisa. Joana chegou ofegante, ainda de camisola, e vendo a cena só soube gritar um estridente “não”. Abraçou José, tomou a arma de sua mão e entre lágrimas de horror mandou que ele fosse embora, fugisse para bem longe, tudo estava perdido. Indiferente aos apelos da amada José mantinha-se paralisado, olhando fixo para o vazio, balbuciando que fora sem querer, não tinha tido intenção. “Seu Manoel parecia louco, veio direto para mim, agarrou meu pescoço, nem percebi quando virei a arma e atirei”. João permanecia alheio a tudo em seu redor, se concentrava em apertar a barriga do pai e segurar sua cabeça. Quando esta finalmente pendeu e Manoel deixou de respirar o filho se virou para o empregado e gritou-lhe a inexorável palavra: “assassino”. Acordado para a realidade José saiu correndo da pensão se desvencilhando dos curiosos que se aproximavam. Correu sem rumo enquanto tentava pensar. O mundo girava em sua cabeça, não queria acreditar que matara o homem que lhe acolhera na cidade, lhe dera um emprego e um teto e acima de tudo era o avô de seu futuro filho. De repente suas pernas estancaram impedindo-o de dar um passo a mais. Estava diante da delegacia. O guarda veio até lá fora e perguntou se ele vira algum fantasma, “Tu ta branco que nem vela home”. José subiu os dois degraus que o separava do soldado e disse com o olho vidrado no olho do outro: “Eu matei o Seu Manoel”.
O julgamento foi rápido. Mesmo alegando legítima defesa José pegou dez anos graças aos esforços jurídicos de João que nunca se conformou com a morte absurda do pai. Nos quatro que cumpriu nunca recebeu visita. Não tinha família e ninguém que sentisse falta dele, só Joana, mas esta estava proibida pela família de sequer mencionar seu nome. Enquanto durou sua pena recebeu toda quarta-feira uma caixa com comida, revistas, livros, sabonetes, xampu, coisas simples do dia a dia que faz enorme diferença para dignos hóspedes do sistema prisional, tudo de fonte declaradamente desconhecida.  Cumprido quatro anos de pena foi solto por bom comportamento. Com o pé na liberdade não pensou duas vezes no seu destino. Com a coragem dos inocentes foi procurar Joana, queria ver o filho. Mas João fora avisado da soltura do assassino do pai e o esperava com um punhado de cabras dentro da pensão. José saiu de lá todo arrebentado, quase morto direto para o hospital. O delegado foi visitá-lo na enfermaria, mas José se recusou a prestar queixa do ocorrido. Uma procissão de curiosos apareceu para vê-lo, mas José nunca soltou um resmungo contra João. Depois de um mês foi liberado pelo médico, mas teria que fazer curativos diários na ferida na perna que não queria cicatrizar. Foi durante esses curativos que conseguiu emprego na farmácia. Numa dada quarta-feira estava fechando o caixa pro almoço quando viu Joana no outro lado da rua com um menino dos seus cinco anos. A mãe sentou a criança no banco, colocou a marmita no seu colo, afagou sua cabeça, disse algo no seu ouvido e foi embora. José chegou devagarzinho, sentou ao lado do menino, pegou a marmita e a colocou no banco, puxou a criança conta o peito e chorou baixinho com medo de assustá-lo.

13.07.09

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