sexta-feira, 29 de abril de 2022

Anunciação

Crônica de uma Crise Anunciada. 

Muito se fala de "Amor nos Tempos do Cólera" ou de "Cem Anos de Solidão", mas para mim a melhor obra do Imortal Garcia Marques é "Crônica de Uma Morte Anunciada". Tento esquecê-lo na estante, mas me é incontrolável o retorno a está obra que resume e retrata quase tudo que teimamos em reviver em verdadeiro moto continuo, dia após dia, ano a ano, década atrás de decada. E por que teimamos em aceitar uma realidade que já era certa no passado? Quando todos os elementos se somam e se projetam declaradamente em determinado rumo, parece ser inexplicável como nenhum dos atores do palco tome posição contra o próximo e fatídico ato. O crescente desmantelamento do serviço público  pediátrico não poderia dar em outra coisa senão o caos. A entrega de grande parte nas mãos das Organizações Sociais, resultado da suposta e insistentemente propalada incompetência do setor público para cuidar de quase tudo, incluindo a saúde, ainda não carimbou resultados. Quem como eu há trinta anos convive com a dita burocracia pública, não constata diferença quando imiscuido no universo das OSs. Os Pediatras foram "expulsos" dos Postos de Saúde. Os serviços de emergência pediátrico, mesmo os privados, foram aos poucos desaparecendo por declarada inviabilidade econômica, e nas Upas a pediatria foi entregue nas mãos de médicos sem a especialização necessária - é claro que há exceções. Como Gabriel, um outro Anjo da Anunciação, prevejo tempos difíceis para a nossa luta pelos pequenos. Os antibióticos começam a se mostrar incompetentes para vencer as resistentes bactérias já acostumadas ao tanto que se usa indiscriminadamente. A cobertura vacinal sofre pavorosa retração diante da desinformação baseada no achismo e na falsa liberdade de opinião e de direito individual. A pediatria está perdendo a poesia para se entregar ao tecnocracismo, ao mundo dos exames mandatórios. Deixamos de escutar e auscultar para ver através dos perigosos raios X. É óbvio que a tecnologia veio para nos ajudar, mas não para nos tornar reféns dela, muito menos para conspurcar os inocentes corpos. Volto vinte anos atrás e me vejo prevendo tudo isso. Não me absolvo com o argumento de ter tentado lutar contra a tragédia anunciada. Santiago Nassar não poderia ser salvo, apesar de ninguém ter desejado sua morte. 

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