quarta-feira, 28 de maio de 2025

Defesa

Abdicar da simplicidade de uma cerveja antes do almoço é quase como desistir da doçura da vida. Enquanto se ouve a frigideira chiar na cozinha, se examina sem dor as intempéries do mundo das ideias e dos fatos. Para que sofrer sem analgésico legal? 

A dor que não preenche uma mínima alma não tem permissão de se fazer sentir. Toma-se um gole bem gelado, arrasta-se tudo que cabe na garganta e joga-se ela fora num sórdido e único escarro. 

Se pedisse para sofrer, não seria assim, jeito bobo, sem motivo aparente, besteira em forma de gente. Sofreria de fato completo, peito aberto, coração sem desculpa, alma plena de pecado, orgulhoso de cada um. Minuto em que se exalta a veracidade de cada incompreensível destino. 

Há lapso incrível entre o que se deseja e o que se entende ser. Os pingos se chocam, as vírgulas carecem de razão, a gramática se embaralha numa modesta intenção de originalidade. Há um terrível anseio de sempre mais na concepção inefável da imortalidade. 

terça-feira, 27 de maio de 2025

Templo

Abrir portas e janelas,
deixar o tempo correr 
por toda a casa,
da sala à cozinha. 

Só não deixar que 
entre no quarto: 
templo sagrado 
dedicado à pequena morte
e ao grande amor. 

sábado, 24 de maio de 2025

Pronto

O chafaris secou,
Sei nem de que fonte.
Desejo que encontra
Seu impreciso fim.

É preciso descansar.
Deixar para outras ideias
A imagem imaculada
Da eternidade e imaginar 
Que a beleza está na 
Tão própria existência.


Sorrisos

...Risos são aqueles
Que prescindem de sentido.

Vislumbre de chuva 
Que não vai cair,

Cordas que encantam,
Notas dissonantes
De louca canção.

Dormir sonhando 
A luz que ficou escondida 
Na pura sombra 
Que pouca gente faz.

As garrafas que sobram 
Perdidas nas sargetas,
Abandonadas onde 
Nenhum deus pode 
Entender,
Deixam rastros de uma 
Viagem que ninguém
Ousa esquecer..

domingo, 11 de maio de 2025

Matriarcado

A música nasce longe e me atrai até a Praça do Pueblo de Machu Picho. Olhando o céu escuro que chora uma fina garoa percebo luzes de holofotes que dançam de um lado para outro. O barulho na praça chega a ser ensurdecedor, mas a alegria é contagiante. Garrafas se esvaziam enquanto corpos se movem alegres, bocas se beijam, mãos se enlaçam e braços levantam os que sucumbiram ao torpor do álcool. Os balões acima do palco anunciam que toda a festa é direcionada a elas: às mães. Os povos andinos preservam o culto à Mãe Terra. A Deusa que lhes acolhe e dá o sustento: o alimento e o ninho. E o que mais simboliza o acolhimento do que os braços de uma mãe? Nascemos seres perdidos no tempo e no espaço, e certamente não estaríamos ocupando e perambulando pela vida se não contassemos com o calor e alimento do seio materno. Mas hoje sou eu que quero ampará-la, levanta-la do chão onde dorme tão quieta, e acolhendo-a bem colada a minha alma, dizer que a amo e que nunca será esquecida enquanto existir a vida que ela me deu.