terça-feira, 31 de janeiro de 2012

Perdi


Perdi, pensei antes mesmo de acordar com a mente embaçada após o sono pesado que só o álcool é capaz de me dar. Abri os olhos e reconheci a rachadura no teto do quarto. O peso da cabeça não me deteve e iniciei incontinenti a busca. No criado mudo o relógio, indiferente a meu desespero, continuava sem cerimônia sua monótona marcha circular, esperando pacientemente a hora de me despertar. Interrompi a procura para zombar dele e enaltecer minha eterna capacidade de acordar antes do seu bip. Ele não me deu ouvidos e prosseguiu sem dar bola à minha falta de razão. Será que está sob o travesseiro? Virei, revirei e nada além da rotineira mancha amarela de baba e do cheiro forte de suor e de álcool. A mulher ao lado roncava de boca aberta. Lembrei o tempo em que não pensaria duas vezes antes de acordá-la para o serviço de cama. Olhei para o companheiro para ver se havia alguma esperança e perdi definitivamente o interesse. Era melhor procurar o perdido. Levantei-me e sai do quarto. A bexiga e o reto reclamaram uma visita urgente ao banheiro, mas a antinatural determinação de aproveitar o tempo fazendo duas coisas simultaneamente me deu fôlego para ir até o escritório pegar a carteira. Corri para o trono que de boca aberta esperava surdo ao borbulhar de minhas tripas. Sólidos, líquidos e pastosos se confundiram numa torrente escandalosa. Ah que alívio! Ignorei o mau cheiro e comecei a explorar detidamente a carteira. De um lado estavam: a identidade, não tinha perdido meu número, a carteira profissional, ainda tinha uma profissão, o Visa, ainda tinha crédito na praça. Do outro lado arranquei algumas cédulas amassadas, sinal que gastara mais do que queria e menos do que podia, ainda tinha salvação para minha fama de pão-duro. Carteira vazia sobrou somente as fotos das meninas, duas pequenas grandes razões para continuar vivendo. Depois da ducha e do banho, lá se foi um pouquinho da ressaca. Com a idéia mais clara, fui até a cozinha, enchi até a metade a caneca de café, mandei a secretária comprar pão e voltei ao escritório para continuar minha busca. Remexi gavetas, virei papéis, vasculhei os bolsos de ontem e nada. O desespero aumentou e o suor frio molhou a testa antes fresca pelo sabonete de ervas. Sentei na poltrona e tomei um gole médio do café já morno. O estômago esquentou, mas a cabeça permaneceu gelada pela angustiante consciência da ausência. Voltei à cozinha para matar a fome que me entontava as ideias. O peso da cabeça sumiu completamente, devia ser hipoglicemia. Desisti da busca. Ao entrar no quarto percebi que o companheiro se animou. Até hoje não achei, sequer descobri o que perdera, mas é muito bom namorar de manhã cedo. 30/04/03. 

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